quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Perder-me





Perder-me, dissolver todos os tecidos da pele, refazer-me. Em um segundo, passo do sonho ao concreto, deixo as cicatrizes mais profundas, abro outras, sangro por todas as frestas, desapareço.

Um dia paisagem, sol, plano. Uma vida toda.

Num instante, o céu muda, o vento sopra.

Prenúncio de tempestade.

Caí no abismo sem fim, percebi a veia dilatada do meu pulso, os olhos cheios de silêncio e lágrimas.

Percorri as pausas das linhas das mãos, abri as janelas, escancarei todas as dores e revirei as palavras − dissecando letra por letra as últimas escritas − as que revelam, as que maltratam, as que fazem acontecer a cisão.

Encontrar, um dia, quiçá, as flores abertas no jardim, sentir novamente o cheiro dos jasmins à noite, parar o horizonte e ver nos seus olhos a intensidade da certeza, o meu reflexo na sua pele interminável, o porto-miragem compassado às batidas do coração.

Em um dia, por uma vida inteira.

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

uns versos

Sou sua noite, sou seu quarto
Se você quiser dormir
Eu me despeço
Eu em pedaços
Como silêncio ao contrário
Enquanto espero
Escrevo uns versos
Depois rasgo
Sou seu fado, sou seu bardo
Se você quiser ouvir
O seu eunuco, o seu soprano
Um seu arauto
Eu sou o sol da sua noite em claro
Um rádio
Eu sou pelo avesso sua pele,
O seu casaco
Se você vai sair
O seu asfalto
Se você vai sair
Eu chovo
Sobre o seu cabelo pelo seu intinerário
Sou eu o seu paradeiro
Em uns versos que eu escrevo
Depois rasgo
E depois rasgo

Adriana Calcanhoto

segunda-feira, 3 de setembro de 2018



e no final e no final e no final


ficamos sem saber para onde foi o cheiro, a luta, a memória


ficamos apenas com a sensação do sonho que nos levou para algum lugar

que nos sabíamos




desde sempre




esperar outra trégua


guardar as mágoas


sufocar o silêncio dos gestos subtraídos





poucos


uma hora muitos





em um dia que levou uma vida toda

segunda-feira, 9 de julho de 2018

Olho suas mãos


Foto: Mariana Alves


Olho suas mãos

nas linhas que migraram para as minhas

na noite que virou espelho

no gesto lento

nas palavras que não existem




quando chove penso em você

quando há sol

quando o frio me traz seu rosto

o vento te carrega para mim

para sempre




criamos um mundo

um oceano

um sentido

um porquê sem resposta

uma maneira de existir




um sim que lutou contra todos os nãos

terça-feira, 3 de julho de 2018






Mergulhar em mar alto, sonhar em águas profundas.


Transformar o abismo em ponte para navegar sem turbulência, para provar a tempestade,

para ter perto algo que não vale o concreto.


Apenas o invisível sob a pele que pulsa, que refaz o caminho, que inventa um hemisfério.


Perder-se nesse mar sem fim, procurar nas frestas o cheiro, trazer o segredo para dentro.


Porque a busca não cessa, o idioma não alcança, o céu esquece e a palavra cura.

sexta-feira, 25 de maio de 2018



longe

um dia miragem

paisagem

o céu estrelado




foi por pouco

por um triz




como canta o Chico

diz se é perigoso a gente ser feliz




pela vida que segue

pela alma que cansa

pelos olhos que não abrem

pela palavra não dita

pelo cigarro tragado

pela madrugada insone

pelo veneno tomado




por uma estrada sem fim




acaba

como um vento breve

como um poema desfeito

como o olhar perdido




a dor

atravessa os dias e as noites

em vão

em brasa

em gestos pequenos

em minhas pálpebras que pesam ao anoitecer




te chamo

por outro nome

até esquecer

e virar apenas memória


Mar alto   Mergulhar em mar alto, sonhar em águas profundas.   Transformar o abismo em ponte para navegar sem turbulência, para prov...