quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Quando eu voltar será para sempre






Refiz todos os passos que havia imaginado, inventei paisagens, descobri céus, mergulhei em meus olhos. Escrevi a narrativa do impossível, do que não é palpável, da pele da palavra antes de ser impressa no papel.




Comecei pelo deserto, lugar do silêncio infinito, dos céus tingidos de rubro, das raras espécies que sobrevivem à severidade do tempo, à falta ou excesso da luz, à alta altitude. Munida dessa essência fundamental, parei, observei, voltei ao início de tudo, para depois jogar-me ao abismo. Ali onde me perdi, quase enlouqueci, me descobri.


Caí com toda a velocidade numa espiral de contradições, sinas, sonhos. Apenas o não nos devolve o sim, o que é de verdade, o que ensina a mudar. A realidade mostra todos os dentes, escancara os medos, mas também nos acorda do pesadelo.


Recomecei do zero, recolhi as dores e os medos, e segui por essa trilha desconhecida e imprevisível. Marquei minha pele com palavras que viraram sangue: “Irreversível. Como uma palavra sem volta. Como um rio que corre. Como o sol em meus olhos”.


Como profecia, o improvável acontece, o som do sonho desenha o sim, há leões na porta do mistério. Vejo o mundo submerso que volta à tona para respirar, descubro paisagens possíveis, refaço a composição do sal, curo as feridas.




Por fim, retorno ao começo, de onde vim, o que sou, como se não houvesse outra possibilidade. Ando pelas ruas da minha memória, me absolvo. Preencho todo o vazio com silêncio e delicadeza, com a certeza de que quando eu voltar será para sempre.







quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Um punhado de sal, lágrimas e flores amarelas








Cerro de Monserrate, Bogotá - Colômbia ( outubro de 2016)


Enquanto houver flores amarelas, nada de ruim pode me acontecer. (Gabriel García Márquez)


Na paisagem impensável montanhas convivem com mares, sais, sóis, sons, ventos. De cima, o ar é rarefeito, escasso, incompleto. Uma vasta atmosfera cubista e desacelerada, entrecortada por nuvens e flores e cores e pássaros e plantas.

Na linha do chão, caos, beleza, certezas, tristezas. Fazer da miséria graça, fazer das dores abraço, fazer do rasteiro emoção. A ancestralidade e o recente passado crus como as ruas chamam a palavra morte e vida, sofrer e prazer ao mesmo tempo.



As esquinas exalam música, dança, ritmo, magias, superstições. O céu imprime as cores do presente, o mar as tintas do passado, a memória as peles do futuro.


Sem preparar, sem esperar, sem perceber, caem todas as defesas do teu sistema imunológico, te arrebata como um vírus, como algo que nunca se está preparado para enfrentar. Forte e rápido como vem, vai e te deixa mais forte.


Carrego sal para curar as feridas, diminuir a reação ao sol, aumentar o sabor, para recordar um tempo onde a substância valia ouro. Lembro que fomos um só, o cérebro, o coração, a magia, a palavra, a matemática, a precisão, a crença. Somos agora apenas vestígios de uma antiga civilização.


Num lugar onde as esperanças foram suspensas para dar vazão às batalhas da lida, às perdas, ao que não faz sentido, chega o momento de emergir, sair do fundo mar, pôr a cabeça para fora d’água, respirar novamente, aprender a olhar sem que ninguém cubra a vista.


Nas escadarias de pedra, as lágrimas se unem à dor e à alegria. Sempre se sabe quando algo é uma coisa só, que se chama, ou se transforma, em “realismo mágico”. Sereno, sabido, primitivo.


Não há contradição, não há linearidade, não há enganos, há apenas um punhado de sal, lágrimas e flores amarelas.

domingo, 9 de outubro de 2016

O silêncio da memória



Ocultar-me, distrair-me, ausentar-me. Todo o silêncio que habita os subterrâneos da memória. Toda a palavra engasgada e partida. O medo percorre as linhas dos hemisférios, sopra bem suave na sua nuca, desvia o olhar quando é encarado.


E invade e nos atravessa e nos distrai de uma dor qualquer. A dor esquecida,talvez nunca sabida, a que não nos damos conta, que não se imagina e não se inventa, que se torna real, que invade a vida de forma aniquiladora e irreversível. O pensamento não chega neste lugar, muito menos os sonhos.


Fragmentos de lembranças, fotografias rasgadas e diluídas pelo tempo. Não lembro mais o contorno do seu rosto, o desenho das pálpebras, o sorriso enviesado, não lembro mais das paisagens febris quando chegava o verão, da secura das tardes caídas, do céu abissal que se abria sobre os pensamentos, dos oceânicos porquês sobre a origem do universo.


Reinvento esse tecido invisível. Para lembrar uma dor, para esquecer outra, para saber qual a cor refletida nas luzes, para acordar e sonhar novamente.


Monto esse quebra-cabeça como se fosse uma maneira de existir. Desenho um percurso tênue, frágil, perigoso na cartografia do impossível. Quando fecho os olhos percorro essa narrativa para não esquecer-me. Em cada palavra escolhida, em cada poema, em cada gesto invisível, em cada silêncio guardado nas frestas da memória.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Subversão



Subverto a forma do verbo. Faço incisões talhadas na pele para que não sumam.

Somos perto – ou quando a memória falha e ressignifica somos longe, somos além, somos a frase inventada, somos pecado e perdão.


O agora, sem passado nem futuro. O tempo-verbo-presente, sem distinção de moradas anteriores ou o plano abstrato da esperança ilusionista.


Cada palavra se torna arma, cria um jogo, uma espiral de significados e enigmas. Uso-as como flechas que atingem em cheio o alvo, que resistem absolutamente ao raso, que acertam ousadamente a pilha ordenada dos papéis, tingem as roupas organizadas por cor, bagunçam a leitura feita por ordem alfabética.


Crio o dicionário das obscenidades, do que não pode ser dito, do que não é nem pensado para que não valha o concreto. Reinvento as letras e o que elas podem significar, escrevo em cima das toalhas brancas engomadas e perfumadas, percorro esta linha sinuosa e frágil da coluna vertebral, basta uma pressão mais forte. Basta a queda, o mergulho. O abismo.


Diante do precipício ouve-se o silêncio refletido das águas. Somos aqui sem agora, somos sem tempo, somos sem ver, somos o espelho partido, somos hemisférios contínuos, somos o mapa que aponta os ventos, somos as linhas imprecisas das palmas das mãos.

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Palavra abissal



O azul, o mais profundo. Toco no fundo do mar o som que não se ouve. Não é possível aos ouvidos humanos. Acontece de repente, como um soco ou algo que se vê na distração. Detalhe invisível, espelho que não reflete, o abissal mundo submerso, as ondas sem cor, a cor que brilha no escuro, a palma da sua mão sem as linhas, a pele cor de opala, a luz uma só. Palavra de silêncio. Borboletas brancas voam em torno dos peixes. Lá, onde existe o outro plano, os sons dos sonhos, o céu invertido de estrelas, onde anoiteço.


Olho nos seus olhos dentro d’água. Não reconheço. Não me deixe sozinha quando me olhar novamente. Reconheça-me. Segure minhas mãos. Não deixe que eu solte. Ensina-me suas frases, letra por letra, invente nosso idioma. Deixe que fale sua língua. Quando estiver dormindo, soletre meu nome no escuro. A manhã chegará mais tarde, a névoa terá se dissipado, e lerei o bilhete que você deixou em cima da mesa com um aviso para lembrar-me que isso não foi apenas um sonho.



Dizem que as palavras possuem segredos, que apenas algumas pessoas sabem. Apenas quem as domina pode ter este acesso. Apenas quem sabe o que está entre as coisas. Apenas quem as têm perto.


Posso dormir sem medo, ver as tempestades surgirem, criar a palavra abissal, aquela que subverte a ordem linear das estreitas esquinas, a cama arrumada, a mesa posta com os talheres certos. Construo a ponte para poder atravessar ao outro lado da margem, vejo novamente seus olhos submersos, reconheço-me.

sábado, 23 de julho de 2016

Habitar-me







A pergunta veio como um sussurro, ou um pensamento que vem à tona: “será que alguém consegue viver sem isso?”. Referia-se ao barulho das ondas do mar, que se ouvia não muito longe. Pensei um pouco sobre a ideia, e logo percebi que a maior parte da minha vida não escutei esse som, que era tão próximo e fundamental para mim. O som que me fazia dormir, que me fazia sonhar, que me fazia sentir além-mar. Lembrei que o escutava quando criança, quando passeava com minha avó na praia antes do sol nascer. Me chamava a atenção a enorme quantidade de águas-vivas que a maré trazia de madrugada. Não sabia e até hoje não sei por que elas morriam na areia todas as manhãs.



O vento parecia ter combinado com o mar a batida das ondas, vinha e recuava, como se esperasse por aquilo todos dos dias. Uma vez contei quanto tempo levava para uma onda levantar e cair sobre as pedras. Sete segundos. O tempo que demora um silêncio compartilhado, o tempo que traz a espuma dos dias, o tempo que alivia uma dor que ainda não existe.


O som do mar ainda estará lá, infinitamente, com toda a aspereza do que é eterno, do que é indizível, do que ainda não se sabe, da esperança – palavra maldita – que existe uma espécie de futuro, de hemisfério, de linguagem ainda não inventada, de saber o que já se habita. Ouço mais atentamente esse som, porque a pergunta foi feita, porque antes não estava aqui.

sábado, 11 de junho de 2016

Vertigem



Vertigem, salto no escuro. O mundo vira literalmente de cabeça para baixo. Sensação de voo, mas queda livre. Nada segura, nada sustenta, nem a respiração lenta que pausa o movimento.

Sem estabilidade, firmeza, chão. Neste momento as palavras caem como estrelas, cobrem o corpo inundado de incertezas. A falta de equilíbrio inverte a paisagem horizontal, formal, linear. Encontro um novo caminho.
Deito, fecho os olhos e lembro que quando isso acontece as cores mudam, as dimensões aumentam, os sentidos chegam mais longe, o livro que estava em cima da mesa cai, como uma folha da árvore.


Cada objeto distrai da sua função, as coisas mudam de lugar e dançam no escuro. O medo vem em forma de vento forte, daqueles que só se veem em dias de tempestade. Mudanças, presságios, sonhos em que se sente a respiração e a textura da pele.

Em um tempo que não sei calcular – acredito que seja instantâneo, embora pareça uma eternidade – um labirinto de vozes, coisas, nomes, palavras ressoa em meus ouvidos. Como zumbido de insetos quando invadem uma plantação.

Permaneço inerte nesse estado próximo à vigília, percorro os caminhos que possam chegar aos lugares mais distantes, abro as janelas, deixo o vento entrar pela porta, escrevo mais um capítulo nas silenciosas manhãs tingidas de branco – quando abre, quase sem querer, a página do livro de Mário Quintana onde está escrito: “sonhar é acordar-se para dentro”.



Com você não há verbo no passado

Seu pretérito é sempre presente

No meu imperfeito futuro

Mar alto   Mergulhar em mar alto, sonhar em águas profundas.   Transformar o abismo em ponte para navegar sem turbulência, para prov...