sábado, 27 de setembro de 2014



“Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra.”


"Então me vens e me chega e me invades e me tomas e me pedes e me perdes e te derramas sobre mim com teus olhos sempre fugitivos e abres a boca para libertar novas histórias e outra vez me completo assim, sem urgências, e me concentro inteiro nas coisas que me contas, e assim calado, e assim submisso, te mastigo dentro de mim enquanto me apunhalas com lenta delicadeza deixando claro em cada promessa que jamais será cumprida, que nada devo esperar além dessa máscara colorida, que me queres assim porque assim que és..."

Caio Fernando Abreu

domingo, 21 de setembro de 2014

O dia em que encontrei Cortázar





Viajo para um país que via apenas em sonhos, e, como tal, pensava não existir. O lugar onde viveu até os 37 anos o escritor que fez com que eu acreditasse no que percebia e, portanto, confirmava minhas sensações e certezas. Abriu-se nesse momento para mim um labirinto de ideias, palavras, sons. A vida deu um salto, aproximou-se, rendi-me àquele abismo, fundamental para fortalecer a espinha dorsal da minha escrita, sentir o som da tempestade à noite, reparar que o intervalo entre uma onda e outra leva sete segundos.


Refiz, todavia, os passos de cada cena, a frase de cada pensamento, a audição e o olfato atentos para os ritmos e cheiros. Percorri, sem prestar atenção nos mapas, as ruas por onde ele andava, os cafés que frequentava. O que ele percebia naquele céu, naquela porta, nas fachadas cinzas, nas calçadas melancólicas e nos ventos sem fim? Vi nessa paisagem, no gesto do homem ao servir café, nos casacos com mãos nos bolsos, no humor à Almodóvar das mulheres portenhas, todos os passos desse homem-gigante. Não o perseguia, o percebia nas frestas, nas névoas, no filtro da luz azul que paira pela cidade. Assim como Horacio Oliveira, o protagonista de O jogo da amarelinha:“E era muito natural eu atravessar a rua, subir as escadas da ponte, dar mais alguns passos e aproximar-me da Maga, que sorria sempre, sem surpresa, convencida, como eu, de que um encontro casual era o menos casual em nossas vidas e de que as pessoas que marcam encontros exatos são as mesmas que precisam de papel pautado para escrever ou que começam a apertar pela parte de baixo o tubo de pasta dentifrícia”.


Era celebração do centenário de seu aniversário, 26 de agosto, e dei a sorte de estar ali, ao lado, nas prateleiras empoeiradas dos sebos, nas livrarias sofisticadas, nas mãos distraídas, no sorriso da velhinha que tomava sol no banco da praça, no imprevisto de assistir a um concerto de jazz. E de repente ouvir “Insensatez”.“Para mim, o fantástico era perfeitamente natural. Eu não tinha a menor dúvida disso. Assim eram as coisas”, dizia ele.


Li em uma revista há alguns anos– por acaso, como ele gostava de mencionar– uma reportagem que narra sua última viagem a Buenos Aires, em 1983 (Cortázar residia em Paris, onde morava desde 1951). Estava com 69 anos e sintomas da doença que o matou em 1984. Lá no último parágrafo estava escrito: “Na avenida Corrientes, uma moça deu-lhe um ramo de flores. Ele sentiu o perfume e comentou: Jasmim com esta fragrância não existe em nenhuma outra parte.Um companheiro de exílio levou-o até a porta do hotel, e o viu caminhando para o elevador. Estava visivelmente cansado, mas feliz, e levava nas mãos o ramo de jasmins”.


Sem saber até então da existência desse fato, lembrei-me – surpresa – que havia escrito um texto que dizia no final: Intensidade e delicadeza são flores de jasmim, talvez Cortázar sentisse assim.


Sim, Julio, o mistério está sempre entre as coisas.


Na esquina, antes de nos despedirmos, Cortázar diz: “A literatura é assim – um jogo, mas um jogo no qual a gente pode colocar a própria vida. Pode-se fazer tudo por esse jogo”.


Já o havia encontrado, apenas confirmei em meus passos esta certeza, percorrendo seus ritmos pelas ruas de sua cidade. Entre o planejamento e o acaso, vivemos. Entre o saber e o sentido, Cortázar.


Publicado Na Revista Ideias - setembro 2014

sábado, 20 de setembro de 2014









Dias desses revi “Paris, Texas”, filme de Win Wenders (1984) com Nastassja Kinski , Harry Dean Stanton, trilha de Ry Cooder e roteiro de Sam Shepard.O drama vivido por Travis (Dean Stanton) permeou para sempre meu imaginário. Seu amor por Jane ( Nastassja Kinski) era algo completamente real e ao mesmo tempo impossível, sua tristeza por sabê-lo estava impressa em seus olhos. O clima árido, desértico, vazio tornava tudo muito mais denso , quase insano. Algumas cenas são inesquecíveis, como quando ele a reencontra em um lugar onde ela trabalha e conversam através da cabine. Tão perto, tão longe. Tão real e tão triste. A dor de Travis é de todos.

Mar alto   Mergulhar em mar alto, sonhar em águas profundas.   Transformar o abismo em ponte para navegar sem turbulência, para prov...