terça-feira, 4 de julho de 2017

A prerrogativa do sim






Apagar-me, para que meus olhos possam acostumar-se com o escuro. Toco onde está a falta, a fala, o silêncio. Onde se forma o vazio, onde está a essência, onde se encontra a raiz dos sonhos. A origem da linguagem.


Na matemática imprecisa dos gestos, a vontade de mergulhar no abissal mundo dos segredos profundos, do rasgo em que se ouve a falha, a faísca do possível, o caminho sem volta.


A pele se transforma em veludo, costuro-a para que me proteja das tempestades, para que me aqueça, para que carregue junto ao vento as poesias, para que sopre bem leve na minha nuca, para que a delicadeza seja uma forma de salvação.


Uma cicatriz invisível se abre entre as frestas do corpo. Tudo expande, dilata, permanece. Sem sangrar a memória, lembro o medo de altura, a sensação vertiginosa de olhar para baixo. O abismo a um passo do concreto. O ínfimo segundo que te move para trás. Ou para frente.


O lugar onde estão os medos, os sonhos, os vãos, as esquinas que levam ao imprevisto, ao imprevisível, à dúvida. Os espelhos prolongam as matizes, a pele-veludo faz girar o caleidoscópio das luzes, brilha, ilumina.


Cubro-me com a ausência das cores. Volto à origem, à substância, ao que se sente e não se vê.

Faço do não a prerrogativa do sim.

sexta-feira, 30 de junho de 2017

Os céus nunca são iguais



Estilhaçar a palavra até perder-me em águas profundas.


Mar bravo. Ondas altas. As ondulações arrebentam onde está mais raso.


Percorro com meus dedos onde está a falta, o silêncio, o vazio. Voraz paisagem em que a febre atravessa e preenche o pôr do sol. Deixo que a chuva espalhe o que foi escrito na areia como uma sentença, um recado, uma declaração, como uma carta não entregue, ao som de lágrimas e vertigens.


Perco a medida, o limite, a sensata proporção do possível.


Prefiro a ausência, o corte, a dúvida. Basta o que está na superfície carregado do óbvio.


Volto à palavra, antes dela, ao silêncio. Ao que pode se formar com os olhos cheios d’água.


Os céus nunca são iguais, como o seu rosto perdido entre todos, como o sopro de uma lembrança, como a memória submersa que um dia volta à tona, como o nó na garganta, a mão que desliza pelos cabelos, a pele que se troca quando se depara com o abismo.


Salto. Silêncio.


O branco traduz a insensatez.





O deserto é Deus sem os homens – Honoré de Balzac 


Silêncio. Imensidão. Presente. Nada é mais arrebatador do que o deserto, nada é mais perto, nada é distante diante da colossal paisagem. A temperatura muda, o corpo transforma, a respiração diminui, os passos são lentos. O tempo é outro. Transcorre sem precisar contá-lo.


Na pele, as cicatrizes invisíveis aparecem, antigas e profundas, feitas por descuido, por zelo, por esquecimento. Transbordam. O pensamento se esvai, como a areia soprada pelos ventos, como algo não palpável, como se não precisasse existir.


Pausa. Respiro. Branco.


A luz entrecorta os contornos das pedras, do azul, o mais profundo. A vida acontece de forma rara, assim como a delicadeza persiste em meio a estados brutos, áridos, ausentes.


O tamanho exato, a medida do que é apenas o essencial, o que não sobra, o que cabe nas palmas das mãos.


Espelhos de céus, montanhas, cores. Reconheço traços que havia perdido, percorro a cartografia do impossível, do mapa ancestral vestido de peles e nuvens, com o sol colado na retina.

domingo, 12 de março de 2017

Após a tempestade

marianna

Sinto o pulso descompassado, a respiração pausada, a interminável fuga para outro universo, a onda que bate nas costas, as tentativas impossíveis de lucidez.

Basta um impulso, um gesto, a insensatez.

Em segundos a tempestade se dissipa, percebo a formação de nuvens em um céu que torna-se claro, no vento que sopra, na paisagem que se abre.

A dimensão exata, o lugar certo, a linearidade precisa do gesto. O caos transformado em sentido, o vazio convertido em silêncio, a palavra impressa na pele no assimétrico percurso das letras, do corpo, do sangue.

Absolver as dores e criar memórias na escrita, que escuta e acalma. Como quando ouço um segredo, quando danço no escuro, quando sonho profundamente e acordo sem saber onde estou.

Escreva-me, percorra-me, anoiteça-me.

Busca-me entre os vãos, entre as peles que se desfazem sem vermos, que se perdem e se refazem.

Encontro o lugar em que tenho a medida exata dos contornos imprecisos das linhas da minha mão, dos mistérios não revelados incrustados nas conchas que guardam a música dos oceanos.

março 2017

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Uma



 marianna


Somos uma.

Uma lembrança de infância, o cheiro de pão doce nas manhãs, dos temperos da cozinha, das mangas caídas em volta da árvore, da capa dura dos livros que nos leva ao mundo inexorável da escrita. A música, as flores, as falas. O céu, as cores, as histórias. O sim, sempre antes do não. A escuta, o silêncio, a tarde.

Tecidos de uma mesma memória.

De mãos dadas e ouvidos atentos ao falar dos sonhos, filmes, pessoas. Ouço seu sorriso, como um horizonte que não deve ser perdido, como uma prece, como um lugar onde me abrigo das tempestades e dos ventos fortes, das marés que sobem, do calor cáustico na paisagem febril.

Intensidade, força, delicadeza. Seu nome escrito na alvorada, no caminho árduo porém terno, seguro, onde há conforto e proteção. O nome da estação onde a natureza transcende e arrebata. Primavera.

Vejo seu rosto refletido nas margens da represa, nos flamboyants laranjas, na terra vermelha. Em cada criança de pé descalço, nas rugas fincadas das mulheres sofridas. No fazer da miséria, abraço, do chão batido, adubo, da vida, algo além da aspereza dos dias.

Quando adormeço, seguimos nossa prosa, sob véus e brisas.

Somos uma, como quem é perto, como quem nasce, como o amor que ensina, transforma e permanece.

Para sempre.

fevereiro 2017

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Nas palmas das mãos

marianna


Perceber, com a forma do vazio, o que existe nas palmas das mãos. Ouvir, como se não houvesse música ou ritmo, permitir que a palavra cesse, que o silêncio atravesse os medos, que exista um lugar onde se veja as tempestades e as cores que transformam o céu, onde o vento carregue as dores, onde exista a pausa antes de partir.

Deslizo meus dedos no vidro embaçado pela chuva, faço um desenho, dou as pistas para você conseguir chegar. Através da paisagem molhada, as árvores perdem a exatidão e desequilibram o plano linear.

Escuto o barulho do mar, conto o tempo que as ondas levam para arrebentar. Sete segundos. Tempo onde guardo o fôlego quando respiro fora d’água, tempo que demora os cigarros tragados, a fúria do entardecer, a efêmera delicadeza dos peixes que moram no fundo do oceano. Presságio de um silêncio abissal.

Escrevo sobre meu corpo, vejo as palavras transformadas em sangue, cicatrizes que se tornam a memória bruta dos sonhos, a subtração dos gestos, a simetria dos espelhos, os espaços em branco.


Guardo essa imagem como se fosse um amuleto, em que possa tocar toda vez que me sinta só, que possa me salvar de um rasgo na escuridão, do cansaço dos dias, das fundas incisões marcadas sob a pele.

Deixo um espaço para o silêncio, para recordar que a casa é perto, não longe.


janeiro 2017


Mar alto   Mergulhar em mar alto, sonhar em águas profundas.   Transformar o abismo em ponte para navegar sem turbulência, para prov...