sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Na pele



Ophelia /1851 (John Everett Millais)

O silêncio habita meu lar, denuncia a angústia do esquecer, de passar à memória e pausar na pele para virar cicatriz. São as esquinas, são as dobras do tempo, são as palavras que não bastam, são aquilo que não tem nome. Depois da tempestade vem o seu rosto, vem a saudade do futuro, o som de algum lugar que existiu. A paisagem perpetua minha espécie. Há um céu disposto a ouvir as preces, há a embriaguez constante do andar a esmo, a vaga lembrança do anoitecer.


Chove. Tudo sem hora. Suspenso. Dias assim que são noite. Noites que viram água. Água que cai na pele. Salgada. Crua. Silêncio. A não ser pelas gotas, pesadas e grandes. Ouço risos ao fundo com música. Nada sai do lugar. Crio uma espécie de asa nessas horas lentas que não se repetem. Algo além do mar está na minha vista, mas não vejo. Persigo isso como se fosse o fogo. Como se fosse um pulo para o outro lado da ponte, do outro lado da margem. Na margem oposta. Carrego essa sensação de tristeza com tranquilidade. Por dentro tudo salta. Por fora, placidez. Caso fosse um destino, um sinal ou rima.


Faço essa incisão na pele, corto, abro uma fenda, espalho dentro da epiderme um oceano de palavras insulares, ventos fortes, verbos líquidos, olhos úmidos. Penso em partir, como se não estivesse mais em mim. Esqueço-me, anoiteço e nasço para poder enfim despertar de novo.


Dobro a folha que escrevi para que alguém descubra no viés da dobradura linha por linha a palavra prestes a ser reinventada. Suave como aquele lugar onde somos felizes, onde pisamos forte na terra, onde sentimos na pele quente a tempestade que chega.



Publicado na Revista Ideias - nov 2014

terça-feira, 25 de novembro de 2014

O silêncio habita meu lar, denuncia a angústia do esquecer, de passar à memória e pausar na pele para virar cicatriz. São as esquinas, são as dobras do tempo, são as palavras que não bastam, são aquilo que não tem nome. Depois da tempestade vem o seu rosto, vem todo esse futuro do passado, o som de algum lugar que existiu. A paisagem perpetua minha espécie.
Há um céu disposto a ouvir as preces, há a embriaguez constante do andar a esmo, a vaga lembrança do anoitecer. Chove. Tudo sem hora. Suspenso. Dias que são noite. Noites que viram água. Água que cai na pele. Salgada. Crua. Silêncio. A não ser pelas gotas, pesadas e grandes. Ouço risos ao fundo com música. Nada sai do lugar. Crio uma espécie de asa nessas horas lentas que não se repetem.
Algo além do mar está à minha vista, mas não enxergo. Persigo isso como se fosse o fogo. Como se fosse um pulo para o outro lado da ponte, do outro lado da margem. Na margem oposta. Carrego essa sensação de tristeza com tranquilidade. Por dentro tudo salta. Por fora, placidez. Caso fosse um destino, um sinal ou rima.
Faço uma incisão na pele, corto, abro uma fenda, espalho dentro da epiderme um oceano de palavras insulares, ventos fortes, verbos líquidos, olhos úmidos. Penso em partir, como se não estivesse mais em mim. Esqueço-me, anoiteço e nasço para poder enfim despertar de novo.
Aterrisso, decifro os sonhos, abro os olhos.
Dobro a folha escrita para que alguém descubra no viés da linha a palavra reinventada.O mundo permeia meu instante no momento que o sol se abre, infinito, para o horizonte febril. Suave como aquele lugar onde somos felizes, onde pisamos forte na terra, onde ouvimos a tempestade que chega, onde a pele é perto, não mais longe. - See more at: http://www.revistaideias.com.br/?/colunistas/96/marianna-camargo/#sthash.hOudwAta.dpuf

domingo, 2 de novembro de 2014

Sol em meus olhos





“Assim como o sol em meus olhos.” A primeira coisa que percebi quando permaneceu em mim a sensação de algumas cenas impressas na memória. Memória e sonho. Sonhos que não terminam nunca. Acordo com aquele peso nos cílios que avisa que será tudo igual, nada mudou. Instinto que insiste em lembrar que existe. Embora tente esquecê-lo. Vem à memória, já gasta, ofuscada e confusa, uma imagem, uma vertigem, uma miragem. Que se repetirá incessantemente.

Uma delas é do filme Paris, Texas – direção de Win Wenders (1984) – com Nastassja Kinski, Harry Dean Stanton, trilha de Ry Cooder e roteiro de Sam Shepard. O drama vivido por Travis (Dean Stanton) permeou para sempre meu imaginário. Seu amor por Jane (Nastassja Kinski) era algo completamente real e ao mesmo tempo impossível. Sua tristeza por sabê-lo estava impressa em seus olhos. O clima árido, desértico, vazio tornava tudo muito mais intenso, violento e doce. Algumas cenas são inesquecíveis, como quando ele a reencontra em um lugar onde ela trabalha como stripper e conversam através de uma cabine de vidro pelo telefone. 

Ela não conseguia vê-lo. Ele sim. Quando Jane percebe ser Travis do outro lado do vidro, diz lentamente:

“Eu costumava conversar a sós com você depois que você partiu. Eu costumava falar com você o tempo todo, mesmo estando sozinha. Conversei com você por meses a fio. Agora não sei o que dizer. Era mais fácil quando eu apenas o imaginava. Eu até imaginava que você me respondia. Tínhamos longas conversas. Só nós dois. Era como se você realmente estivesse comigo. Eu o via, sentia seu cheiro. Eu podia ouvir sua voz. Às vezes sua voz me acordava. Acordava-me no meio da noite, como se você estivesse no quarto comigo. Depois, isso foi lentamente acabando. Já não podia mais imaginar você. Tentei falar em voz alta com você como sempre fazia, mas não havia nada lá. Já não podia mais ouvi-lo. Então eu apenas desisti. Tudo acabou. Você simplesmente desapareceu”.

O mundo ficou suspenso, o tempo parou por horas. Pausa na paisagem voraz.

Território não habitável, terra inóspita, outro hemisfério. O deserto de Travis e seu silêncio. As linhas da sua mão migraram para a minha. Profundas como a pele.

Sinto as pálpebras pesadas, abro os olhos, vejo apenas o sol que entra em minha retina como brasa. Grãos de areia se dissipam com o vento. Brancos.


O que fica impresso, o que está na memória não se apaga. Nem com ferro e fogo. Nem por nada. Cicatriz, ferida, delicadeza ou algo que possa chamar de insanidade – ou amor. Não seriam a mesma coisa? Tão perto, tão longe. Tão real e tão triste. Forte como o sol do meio-dia. Quase febre. Quase insolação.

Publicado na Revista Ideias outubro 2014

Mar alto   Mergulhar em mar alto, sonhar em águas profundas.   Transformar o abismo em ponte para navegar sem turbulência, para prov...